quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

''A construção do conhecimento é um processo colaborativo'' - Uma visão sobre a Propriedade Intelectual


Ladislau Dowdor é graduado em Economia Política pela Université de Lausanne (Suíça), com especialização em Planificação Nacional pela Escola Superior de Estatística e Planejamento, onde fez o mestrado em Economia Social e doutorado em Ciências Econômicas. Atualmente, é professor na PUC-SP.
Falou sobre a economia do conhecimento e as transformações que ela traz para as relações, para a política e, claro, para a própria economia".
Segundo o economista, a reação de tentar travar o acesso ao conhecimento, principalmente com as oportunidades que a Internet disponibilizou para tal ação, é compreensível. “Quando surgiu o cinema, diziam que ia matar o teatro; quando surgiu a televisão, disseram que ia matar o cinema, e assim por diante”. Ladislau Dowdor, que concedeu à IHU On-Line, por telefone, a entrevista a seguir, falou sobre a economia do conhecimento e as transformações que ela traz para as relações, para a política e, claro, para a própria economia. “Na realidade, acho que não há prejuízo necessário. A densidade do conhecimento está aumentando no planeta, e a venda de livros continua aumentando”, opinou. “O que é absurdo em termos econômicos é as pessoas registrarem uma ideia e ficar vivendo de um pedágio sobre ela, quando o que interessa para o resto da humanidade é que o máximo de gente possível tenha acesso”, continuou.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que marca essa passagem da Propriedade Intelectual para a Economia do Conhecimento?
Ladislau Dowbor – O debate da propriedade intelectual é, em grande parte, um debate jurídico em torno dos produtos criativos a quem pertencem e como devem ser remunerados. O que proponho é ver isso de maneira bem mais ampla no quadro da sociedade do conhecimento. Hoje, quando se compra um produto por cem reais, por exemplo, como ordem de grandeza, 75% do que se paga não é o bem físico em si, mas o conhecimento incorporado. Ou seja, a criação de valor hoje está centrada dominantemente no conhecimento incorporado aos bens. Isto muda profundamente todo o conceito de produção econômica, pois, no século XX, os bens eram essencialmente físicos, e se eu passasse um produto físico para alguém, eu deixaria de tê-lo, portanto é um bem rival, a propriedade é essencial. Quando eu passo um conhecimento para uma pessoa, eu não o perco. A economia se chama “bem não rival”. É um bem cujo consumo não reduz o estoque, pelo contrário, quanto mais o conhecimento circula, mais toda a sociedade enriquece. Isto leva a uma necessidade de se repensar o próprio conceito de propriedade intelectual, porque os bens criativos se regem por leis diferentes do que os bens físicos.
IHU On-Line – Que tipo de prejuízos o copyright nos traz hoje?
Ladislau Dowbor – Os prejuízos são de diversos tipos. Pense no seguinte: no mundo da educação, somando alunos, professores e administradores, são 60 milhões de pessoas no Brasil, é quase um terço da população do país. Estamos dedicando imensos esforços para formar uma geração com capacidade de “navegar” na sociedade do conhecimento. Na universidade onde trabalho, e em outras também, o acesso aos livros é extremamente complicado, tanto pelo preço como pelas dificuldades das bibliotecas. O que acabamos fazendo é autorizar a cópia de um capítulo de um livro. Isso é pré-história. O Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), principal centro de pesquisa norte-americano, elaborou o que se chama Open Courseware, onde todo o material científico dos professores é disponibilizado gratuitamente on-line para todos os alunos. É profundamente contraditório ter gigantescos investimentos no mundo da educação e, ao mesmo tempo, dificultar o acesso aos textos científicos, aumentando a necessidade de um aluno comprar os livros. O GPOPAI, um núcleo de pesquisa da USP leste, com Pablo Ortellado e outros, calculou que, por ciclo letivo, os alunos teriam que gastar R$ 3.800,00 em livros, mas 80% dos alunos são de famílias com menos de cinco salários mínimos. Isto não vai acontecer.
De certa maneira, temos que pensar o seguinte: quem produz os conteúdos, ou seja, quem é autor com direito autoral, recebe muito pouco neste processo. Quem, efetivamente, recebe o dinheiro são empresas que controlam a intermediação ao fornecer a base material desse conhecimento, que pode ser um livro, um DVD, um disco, entre outros. Agora, com as novas tecnologias, isso não é mais necessário, porque o acesso on-line ao conhecimento é perfeitamente possível. É normal que essas editoras cobrem por seus livros, mas não devem proibir as outras formas de acesso. Quando muita gente gosta de um livro, o compra, mas a proibição em torno do copyright, pirataria, e coisas do gênero, trava imensamente a liberdade de acesso e de criação do mundo da educação. Digamos que para assegurar um volume relativamente limitado de lucros de intermediários, gera-se um prejuízo imenso em termos de acesso ao conhecimento por parte da população.
Outro eixo que está sendo muito discutido hoje, inclusive para a Conferência de Copenhage, é que não podemos enfrentar o aquecimento global e os dramas da mudança do paradigma energético produtivo do planeta, sem generalizar o acesso às tecnologias limpas. 97% das patentes são propriedade de países desenvolvidos, e elas nem sempre criaram seus conhecimentos, mas têm poderosos grupos que trabalham com o registro de todo e qualquer conhecimento no planeta. O resultado disso é uma dependência de todo o planeta sobre os países desenvolvidos e seu controle de patentes. As Nações Unidas, em seu último relatório da situação social e econômica do planeta, chamado World Economic and Social Survey 2009, propõem a flexibilização radical de patentes copyright, royalties etc. para generalizar o uso das tecnologias limpas. Outro eixo onde há um desequilíbrio radical é entre os que colocam pedágios e querem ganhar sobre estes conhecimentos, muito frequentemente desenvolvidos por terceiros.
Um exemplo muito importante é na área farmacêutica. Temos um travamento do acesso à produção dos chamados coquetéis para enfrentar a AIDS. Temos 25 milhões de pessoas que morreram da doença, 36 milhões de pessoas infectadas e um grupo limitadíssimo de pessoas que têm acesso aos medicamentos, pois os grandes grupos farmacêuticos, a chamada big farma, travam essa produção nos países de terceiro mundo, alegando que estariam infringindo os seus direitos de propriedade intelectual. Isto tem uma dimensão ética, e é óbvio que se trata de uma tragédia planetária. É também uma tragédia econômica, pois, para assegurar os lucros de alguns grandes grupos multinacionais, e essencialmente de investidores financeiros, estamos reduzindo dramaticamente a produtividade de grande parte das populações afetadas pela AIDS. O que está havendo é que a tecnologia evoluiu muito, hoje é fácil generalizar conhecimentos, e isso se torna uma imensa oportunidade de desenvolvimento do planeta e de redução das desigualdades. Isso está sendo travado por grupos que se reapropriam do conhecimento e utilizam leis do século passado, na linha da propriedade, como se fossem bens físicos, e não é. Para o conhecimento as ideias, tem que se circular no planeta de maneira livre.
Fonte:-http://www.biodiversidadla.org/-