POR
IVAN AHLERT
Aparentemente mais
contagioso do que a gripe tipo A, há um surto antipatentes espalhando-se por
setores do Poder Executivo – com foco particular em alguns ministérios –, do
Judiciário e do Legislativo, onde tramitam diversos projetos de lei com o selo
do “antipatentismo”. Infelizmente, o elemento transmissor do surto achou um
terreno fértil para propagação na tese de que as patentes são responsáveis
pelos altos custos dos medicamentos. Está aí o mote irresistível para a
campanha.
Um elemento
adicional, para quem requer um grau de argumentação um pouco mais sofisticado,
está na ideia de que o Brasil apenas voltou
a conceder patentes farmacêuticas por conta das obrigações que assumiu no plano
internacional com o acordo TRIPs, o bem conhecido acordo sobre propriedade
intelectual administrado pela OMC.
Assim temos a
fórmula ideal para um levante: o Brasil foi obrigado a conceder patentes que
encarecem os medicamentos em claro prejuízo à saúde pública! Afirmação tão
irresistível quanto incorreta.
A atual Lei de Propriedade
Industrial, Lei 9.279/96, tramitou durante cinco anos no Congresso Nacional e
foi objeto de inúmeras audiências públicas, à maioria das quais compareci.
Todas as tendências imagináveis estavam presentes nos debates. Pelo menos na
fase inicial de tramitação do respectivo projeto de lei na Câmara dos
Deputados, o futuro acordo TRIPs era citado apenas ocasionalmente nos debates,
já que a aprovação daquele acordo apenas se daria após a aprovação inicial do
PL 824 naquela casa em junho de 1993, este já incorporando os dispositivos
prevendo a patenteabilidade dos inventos farmacêuticos.
Além disso, e não
obstante as pressões nesse sentido, nossos parlamentares abriram mão de todos
os prazos de transição que TRIPs oferecia aos países em desenvolvimento para
implementação de proteção na área farmacêutica e optaram por exceder aos
padrões mínimos de proteção daquele acordo ao se instituir um sistema de
revalidação de patentes para inventos cuja patenteabilidade era vetada pela
legislação anterior: o “pipeline”.
Portanto, é falsa a
afirmação de que nossa lei foi moldada por imposição das obrigações
internacionais do país. Manifestadas todas as tendências, prevaleceu no
Congresso brasileiro o entendimento de que os representantes da corrente
contrária às patentes não haviam contribuído para garantir para a sociedade
medicamentos cada vez mais eficazes.
Mais de 10 anos mais
tarde, há aqueles que reclamam que a lei não proporcionou o avanço esperado e
engrossam o coro dos que passaram a se opor, ou sempre se opuseram, às
patentes.
Evidentemente, uma
boa lei de patentes é um elemento essencial em qualquer processo de
desenvolvimento sustentado, mas não é suficiente. Como já comentou uma vez o
ex-presidente do INPI, Roberto Jaguaribe, “os grandes limitadores do investimento
são os juros altos, a elevada carga tributária e o baixo nível de
financiamento”. De fato, juros altos e carga tributária excessiva são uma
sentença de morte para o investimento em atividades de risco, como a pesquisa.
E ainda há a burocracia para abrir novas empresas, para obter autorização de
coleta de material genético para pesquisa, para importar insumos para pesquisas
e por aí vamos.
Isto para não falar
dos conhecidos problemas de mal gerenciamento do dinheiro público. Matéria
publicada em O Globo Online de
12/6/2008, “Banco Mundial reprova hospitais brasileiros por ineficiência e má
gestão”, revela que um relatório daquela entidade apontou a grave ineficiência
do sistema de saúde brasileiro, onde apenas em internações que não requeriam
cuidados hospitalares foram gastos desnecessariamente R$ 10 bilhões em 2006.
E se reclama das
patentes? Lei de patentes sozinha não faz milagres, mas em conjunto com medidas
apropriadas pode proporcionar as condições necessárias para o desenvolvimento
que o país procura e de que precisa.
A falta de patentes
ou o enfraquecimento do sistema atende apenas aos interesses econômicos da
indústria da cópia e do governo que pode empurrar para os laboratórios
estrangeiros a culpa por suas dificuldades em garantir o acesso adequado da
população aos medicamentos.
É simplista o
pensamento de que quanto menos patente, melhor, como sugere o mote da promoção
do domínio público da Agenda do Desenvolvimento proposta pelo Brasil na OMPI.
Apenas para fins de comparação, nos EUA havia em 2004 cerca de 1,6 milhões de
patentes em vigor.
Estimo que no Brasil esse número seja em torno de 20 vezes
menor. Ou seja, grosso modo 95% da tecnologia patenteada nos EUA está em
domínio público no Brasil. E nem por isso uma parte expressiva dessa tecnologia
é aproveitada. Ao contrário, sem a patente, o empresário fica sem o estímulo
necessário para investir no desenvolvimento de uma versão comercial de novos
produtos.
Há pelo menos três
elementos importantes que não têm sido considerados de forma apropriada nos
debates:
1) Patente e
inovação constituem um binômio indissociável. Quem investe em inovação e não vê
o resultado de seus esforços protegido, dificilmente voltará a investir.
2) Mesmo partindo da
descrição suficiente de um invento em um pedido de patente, o desenvolvimento
de um produto final para lançamento comercial ainda requer um esforço
considerável. Em outras palavras, descrever e fazer são coisas diferentes.
3) O Brasil, pela
sua estatura econômica, não pode esperar receber o mesmo tratamento que recebem
os países africanos mais pobres na questão dos preços dos medicamentos.
Miguel Jorge,
ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, e Jorge Ávila,
presidente do INPI, em artigo publicado no Valor Econômico em 1/7/2009, já
chamaram atenção para o fato de que é imperativo consolidar a cultura de
inovação na indústria brasileira e aumentar o depósito de pedidos de patente no
exterior. Também destacaram, com muita propriedade, que “no Brasil, ainda é
baixa a compreensão da dinâmica das redes de inovação globais e do papel que a proteção desempenha”.
Como se concilia um
programa de intensificação de depósitos por nacionais com uma campanha aberta
contra as patentes? Não se concilia. Desenvolver uma cultura de patentes não é
algo que se possa fazer de forma segmentada: não é possível fazer um discurso
pró-patente para empresários e pesquisadores brasileiros e um discurso
antipatentes em outras frentes; a contradição é visível e provoca incerteza.
Na questão da
descrição contida em um pedido de patente, discute-se atualmente no STF a
constitucionalidade das cláusulas de “pipeline” da Lei 9.279/96. Não se pode
pretender em poucas linhas debater as complexas teses que se apresentam contra
aquelas patentes, mas em boa dose todas as teses convergem para uma concepção
equivocada de que uma vez publicados os respectivos pedidos de patente no
exterior não haveria mais razão para se concederem patentes no Brasil. O
equívoco é análogo a julgar que a demarcação de uma área onde se supõe haver
reservas de gás equivale a estar de posse daquele gás. Quando desapropriou e
ocupou à força a refinaria de gás da Petrobras na Bolívia alegando que o gás é
uma riqueza que pertence ao povo, o governo boliviano desconsiderou todo o
investimento e esforço feito pela empresa brasileira para transformar uma
riqueza apenas potencial em um ativo real, ao extrair, processar e transportar
o gás. Da mesma forma, ao desenhar em um pedido de patente os contornos legais
de uma molécula promissora ou do novo uso de uma molécula já conhecida, o
depositante ainda terá um longo caminho a percorrer até que o respectivo
comprimido esteja disponível nas prateleiras das farmácias. A concessão da
patente protegerá esse esforço adicional.
Entre as atitudes
que causam estranheza coloco também a cruzada empreendida pelo INPI contra a
correta contagem dos prazos das patentes pipelines, matéria que será objeto de
julgamento no STJ e sobre a qual não me parece haver margens para dúvidas: o
prazo da patente pipeline é o prazo remanescente da patente que vigora no país
do primeiro pedido. A lei não impõe que a patente em vigor naquele país seja
necessariamente aquela concedida ao primeiro pedido. Mesmo no Brasil é possível
depositar um primeiro pedido de patente e abandoná-lo em favor de um novo
pedido que reivindica a prioridade interna do primeiro e nesses casos o INPI,
sem problemas, tem contado o prazo da patente a partir da data de depósito do
novo pedido, não da prioridade.
E há também a
questão das emendas em pedidos de patente onde desde o Acórdão na Apelação
Civil 2003.51.01.513584-5 de 27/6/2007 que condenou o INPI a abster-se de
aplicar um parecer sobre apresentação de emendas, faltam regras claras sobre o
assunto, o que tem provocado incerteza jurídica.
O último elemento é
aquele relacionado com a imagem que o Brasil quer passar no exterior. Se o país
quer ser respeitado como um ator maduro no cenário mundial, deve assumir sua
responsabilidade dentro do sistema internacional de proteção à propriedade
intelectual. Pesquisas na área farmacêutica envolvem, de fato, custos elevados
e não se pode pretender que o Brasil se beneficie das mesmas reduções de preços
que são oferecidas a países africanos. Menos ainda diante dos conhecidos
problemas de gestão que sugerem que não há falta de recursos, mas sim um mau
aproveitamento do dinheiro público que deprime a capacidade do governo de
garantir à sociedade o acesso adequado aos serviços de saúde. A conta pela
ineficiência não pode cair no colo do setor privado.
Para finalizar, se
algumas correntes de opinião enxergam abusos no exercício dos direitos
assegurados por patentes, esses abusos, se existem, devem ser tratados
pontualmente e através dos instrumentos apropriados. Considerada a respeitável
produção científica de nossos pesquisadores, nossa capacidade de inovação
através da transformação do conhecimento científico em tecnologia aplicada fica
enormemente prejudicada pelo envio de informações distorcidas e contínuo ataque
às patentes que poderão gerar mudanças nas regras de proteção das invenções.
Fonte: http://www.conjur.com.br